O jornalista José Arbex Jr. abriu na quinta-feira, dia 29 de maio, o curso “Reflexões sobre o Mundo Árabe”, com a aula “O árabe em busca da própria identidade”. Em meio aos debates que se seguiram à apresentação, ficou patente a necessidade, pelo menos dentro do que foi mostrado pelas cerca de 50 pessoas que atenderam à primeira aula, de refletir de um modo profundo sobre a identidade árabe das comunidades que vieram a habitar, em diferentes momentos, o Brasil. “O que é ser árabe?”. Em meio às discussões, uma das perguntas se referiu ao fato de a imagem árabe estar tão ligada à imagem do atraso, e ao fato de aqueles que carregam essa herança assumirem e defenderem sociedades e modos de vida vistos como atrasados. Na prática, foi um exercício sólido de reflexão sobre os diversos aspectos da identidade árabe. Abaixo, seguem trechos da fala de conclusão de José Arbex Jr.: “...Eu acredito que uma grande responsabilidade da apresentação dos árabes como uma comunidade atrasada e da criação de um estereótipo de povos atrasados cabe aos governantes árabes. Porque a maneira autoritária como eles governam, a falta de democracia nesses países, a forma às vezes feudal como eles tratam as comunidades de seus próprios países, criam mesmo uma imagem que muitas vezes não está distante da realidade. (...) Eu me lembro que saí da grande imprensa, pelo seguinte: em 91, eu era editor da Folha quando estourou a Guerra do Golfo. Via que todo o mundo acreditou que aquilo era uma guerra sem mortes. Você ligava a televisão e era um videogame, você não tinha sangue, não tinha mortes. E nos Estados Unidos, os jornais apresentavam a guerra da seguinte forma: quantos americanos tinham morrido, quantos tanques e aviões tinham sido destruídos. Não tinha nenhuma tabelinha de quantos iraquianos haviam morrido. Então era como se não estivesse morrendo ninguém. Hoje sabemos que foram, pelo menos, 150 mil mortes, alguns falam até em 300 mil pessoas, em 40 dias de bombardeio. Mas o que me levou de volta à universidade para tentar estudar isso foi uma pergunta simples: naquela época Bagdá tinha 4,5 milhões de habitantes. Como você faz para as pessoas acreditarem que é possível bombardear uma capital com essa população durante 40 dias e 40 noites consecutivas sem parar, sendo que só na primeira semana eles jogaram uma tonelagem de explosivos equivalentes a uma Hiroshima por dia, jogaram sete bombas de Hiroshima durante a primeira semana. Então, como eles bombardeiam uma capital dessa forma durante 40 dias sem matar ninguém? É um negócio ..., se você formular a pergunta desse jeito, provoca risos, mas o mundo acreditou. A pergunta é: como o mundo acreditou?Eu estava em uma posição privilegiada para responder porque eu era editor de Exterior de um jornal grande do Brasil, a Folha de S. Paulo. Uma das respostas é a seguinte: como editor do jornal, eu recebia diariamente na minha mesa, entre o momento em que Saddam Hussein invadiu o Kuwait e o momento que começou a guerra, ou seja, agosto de 90 e janeiro de 91, seis meses mais ou menos, dezenas de fotos dos soldados se preparando para ir ao Oriente Médio. Você via a cara do soldado, você via o rosto dele. Tinha embaixo da foto uma legenda informando que o cara se chamava John Smith, que ele tinha 21 anos, que a namorada dele se chamava Mary, que ele ia comer no Macdonald´s, que ele adorava Madonna, que ele via o filme tal, e que ele queria casar com a moça, então era para ele não morrer na guerra, e tal. Depois de seis meses recebendo esse tipo de informação, meu amigo, você se sente amigo dos caras, você é da turma deles, você conhece todo mundo. E mais do que isso. Eles vêem os filmes que eu vejo, eles gostam das cantoras que, pelo menos, eu conheço, vão nos restaurantes que eu vou. E do lado de lá, o que eu recebia: fotos de mulheres com véu mostrando como eles são machistas, fotos de crianças de 15 anos com metralhadoras mostrando como eles são fanáticos, feiras de camelos na Arábia Saudita mostrando como eles estão mil anos atrasados. Quer dizer, é o Orientalismo dirigindo o olhar para a cobertura da guerra. É o olhar orientalista sobre a guerra. De um lado estamos nós, com nossos valores ocidentais, os elevados valores da nossa democracia, da nossa cultura e da nossa sociedade, e do outro lado, quem? Um bando de bárbaros invisíveis. Você não sabe o nome dos caras, não sabe o que eles fazem, o que eles deixam de fazer, isso não existe. Sabe que eles são fanáticos, exóticos, mulher com véu, camelo. Você cria a sensação de um choque de civilizações. (...) Então, é por isso que a gente acreditou que não morreu ninguém, porque quando a guerra começou, já não tinha ninguém do outro lado. Ninguém no sentido de um igual, alguém que se comparasse ao nosso patamar civilizatório. A gente estava aqui, no alto, e eles lá embaixo, muito lá embaixo. Por isso, ninguém morreu, porque não tinha ninguém. É o mesmo processo que fez com que a Igreja Católica conseguisse explicar a morte dos povos originários. Até hoje, ano passado, o Papa (Bento XVI), disse: que é mentira dizer que a Igreja Católica impôs o catolicismo aos povos originários. Os povos originários abraçaram espontaneamente o catolicismo, pois intuíram que o deus católico é o único deus e que é superior aos deuses que eles tinham. Quando eles abraçaram o deus católico, eles deram um salto na sua espiritualidade. E que, portanto, é um atraso e um retrocesso você querer agora reavivar as divindades e os valores pré-colombianos. É um atraso um povo recuperar sua cultura. (...) Esse processo de tornar invisível outras culturas e outros povos, esse processo de aniquilar com outros povos e culturas no campo ideológico, no campo cultural, no campo do imaginário, é um processo muito antigo, que os Estados Unidos hoje dominam com uma maestria absoluta. Agora, para isso eles contam com a preciosa colaboração de sheikhs, emires, reis e déspotas do Oriente Médio, sem dúvida nenhuma. E lógico, como você disse, somos formados por essa visão, pois a gente lê a Folha de S. Paulo, a gente lê o Estadão, a gente assiste à TV Globo. 99% dos filmes de Hollywood que têm terrorismo, em algum momento vai aparecer um árabe, se o árabe não for o terrorista, ele é quem forneceu a bomba para o japonês terrorista... (...) Eu lembro, no auge da coisa, há uns três anos, você tinha jovens com um sobrenome árabe outro não árabe, eles escondiam o sobrenome árabe e falavam o não árabe. Eu lembro que na guerra dos Seis Dias, os meus amigos na escola olhavam para mim e zombavam, pois, evidentemente, meu nariz não permite negar minha origem. Os caras olhavam e falavam, ‘vocês tão tomando o maior pau’. Lógico que existe esse sentimento de vergonha, de alienação, acho que tudo isso faz parte dessa matriz cultural”.