Série de verbetes informativos sobre os árabes: Livro das Mil e Uma Noites, por Mamede Mustafa Jarouche

Qua, 30/04/2025 - 10:29
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Conheça o verbete 8 da série especial do ICArabe, que aprofunda o entendimento sobre o mundo árabe com precisão e responsabilidade.

(Confira a lista completa de verbetes neste link)

Livro das Mil e Uma Noites

A coletânea de narrativas que em árabe se chama kitāb ’alf layla wa layla, Livro das Mil e Uma Noites, é constituída, basicamente, de duas partes: a primeira, relativamente curta, que a crítica literária convencionou chamar de “prólogo-moldura”, em que se relatam as relações entre as personagens de Šāhriyār, “rei das ilhas (ou penínsulas) da China e da Índia”, seu irmão Šāhzamān, “rei de Samarcanda”, e das irmãs Šahrazād e Dīnārzād, filhas do grão-vizir de Šāhriyār; e a segunda, constituída pela totalidade das histórias narradas por Šahrazād para a sua irmã Dīnārzād e para o rei Šāhriyār. O propósito dessas histórias é adiar a morte da narradora, o que ela consegue, nas versões mais tardias, ao longo de mil e uma noites contadas.

Como se trata de uma obra sem autoria definida, e com origem imprecisa, seus inúmeros manuscritos, espalhados pelas bibliotecas do mundo, apresentam notáveis diferenças que as edições impressas a partir do século XIX tentaram, mas não conseguiram, eliminar. O conteúdo do prólogo-moldura é mais ou menos homogêneo, embora apresente diferenças interessantes conforme a versão consultada; as diferenças mais acentuadas, contudo, se encontram tanto na quantidade como no conteúdo das histórias contadas por Šahrazād.  

Essas diferenças se devem, com certeza, à origem e à própria estrutura dessa coletânea. A hipótese mais provável para a sua origem se encontra no livro alfihrist, O Catálogo, do historiador e letrado bagdali Annadīm (m. c. 997 d.C.), que menciona uma obra persa, sassânida, chamada hazār afsān, “mil fábulas”, hoje perdida, vertida ao árabe por volta do século IX d.C., a qual logo conquistou popularidade, passando a circular, talvez preferencialmente, na esfera oral. 

Entre os fatores que contribuíram para o que se chama de “instabilidade filológica” do texto das Noites, isto é, a imensa variabilidade das narrativas constantes da coletânea, podem-se arrolar três principais: primeiro, a ausência de autoria; segundo, a primazia da transmissão oral; terceiro, a própria estrutura “onívora” da coletânea, que permitia, sem maiores implicações, o acréscimo e a supressão de história ao bel prazer dos narradores.

Deve-se ressaltar, no entanto, que as edições do Cairo (1836) e de Calcutá (1839-1842) estabeleceram aquilo que a crítica chama de “vulgata” das Mil e Uma Noites, que circula hoje entre os leitores árabes e tem a preferência dos tradutores para as mais diversas línguas. 

 

Mamede Mustafa Jarouche

mamede


Desde 1992, é professor de língua e literatura árabe na USP, onde também se bacharelou (1988) e obteve os títulos de doutor (1997), livre-docente (2009) e Professor Titular (2017). Foi Chefe do Departamento de Letras Orientais da FFLCH da USP até 2023. Fez pesquisas de pós-doutorado na Universidade do Cairo sobre as relações entre discurso político e ficção na prosa árabe clássica.
Pela sua tradução diretamente do árabe para o português do Livro das Mil e Uma Noites, recebeu em 2005 o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e o Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional. Venceu igualmente o Prêmio Jabuti de Melhor Tradução em 2006. Ganhou este mesmo prêmio em 2010, pela tradução de O Leão e o Chacal Mergulhador. Em 2021 publicou a tradução do quinto volume do Livro das Mil e Uma Noites pela Biblioteca Azul, da editora Globo.